Ricardo Vaidergorn
Um grupo de arquitetos reuniu-se em 13 de maio de 2011 no Instituto dos
Arquitetos em São Paulo para debater a preservação da memória relativa ao
espaço do Cine Belas Artes. O debate foi conduzido por Eduardo Carlos
Pereira, coordenador do G.T. de Patrimônio Histórico do IAB-SP e contou com
a presença de Rosana Ferrari, presidente do IAB-SP; Cecília Rodrigues,
professora da Universidade Mackenzie; Fernanda Falbo Bandeira de Mello,
presidente do CONDEPHAAT; Nadia Somekh, conselheira do IAB-SP no
CONPRESP e professora da Universidade Mackenzie; Nabil Bonduki,
professor da FAU-USP e Walter Pires, diretor do DPH para uma plateia
bastante significativa.
Ainda não há consenso sobre o que é mais adequado a se fazer. A questão é
complexa. A esquina do cinema, da Rua da Consolação com a Avenida
Paulista, recebeu benfeitorias e investimentos públicos, sendo que até no
subsolo do local, há a implantação do cruzamento de duas linhas do metro.
Mas, a ênfase em relação àquele espaço é o valor histórico peculiarmente
significativamente. De todo modo, o interesse despertado pelo tema da
preservação da memória, por profissionais tão competentes com foco na
questão das identidades urbanas ainda não deixa de ser um fato inédito em
São Paulo.
Sobre a esquina da Rua da Consolação com a Avenida Paulista, a do Cine
Belas Artes, assim como houve um tempo em que a musica Sampa eternizava
a esquina da Avenida Ipiranga com a Avenida São João é impossível esquecer
a do Belas Artes. Em frente, na outra calçada da Rua da Consolação, estava o
Riviera Bar onde servia Juvenal o discreto e democrático garçom de bigode
fininho. Ao lado do Riviera havia o Ponto 4, um bar, bem em frente ao cinema,
cuja calçada, em fins dos anos 1970, era um ponto de aglomeração de
estudantes universitários, onde se debatia temas políticos e de uma pequena,
mas significativa multidão, num momento onde tais aglomerações eram
proibidas.
Naqueles anos, nem o presidente da República, nem o governador do estado,
nem o prefeito eram eleitos pelo povo. Tinha madrugada com mais de mil
pessoas apinhadas entre a calçada e o meio fio. Apesar das temíveis “Leis”
que proibiam as aglomerações, como, por exemplo, o Ato Institucional no 5,
ninguém deixava de parar por lá. Muitos dos que ali conheci estiveram presos
nos porões do DOPS (o Departamento de Ordem Política e Social) ou no
DOI/CODI. Outros, subitamente, desapareceram para sempre. Era mais seguro
ficar no meio da multidão. Ali os universitários e gente que hoje faz parte do
governo do Brasil bebiam cerveja ou água e de pé na calçada. Camburões e
Veraneios pretos, da polícia política “à paisana”, sempre circulavam ao redor.
Havia os dedos-duros (da polícia política) sempre a espreita “em busca de
trabalho” e o problema maior era quando decidiam “criar condições para um
novo trabalho” ou seja; incriminar (quase sempre em falso) alguém com barba,
cabelos longos ou menina de tranças e jeans, por “subversão e terrorismo”. E
estes “sumiam”, eram presos no meio da noite sem chance de defesa, sem
cometer crime algum.
Ninguém sabia muito bem quem era quem. E o Cine Belas Artes exibia em
seus luminosos os títulos de filmes de Luis Buñuel, como; O Discreto Charme
da Burguesia, Ano Passado em Mariembad de Alain Resnais, O Silêncio de
Ingmar Bergman, Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha ou o
cinema novo com cenas bucólicas da caatinga inerte e desesperançada de São
Bernardo de Thomas Farkas. Eram tempos perigosos.
Bem sabemos que São Paulo não é uma cidadezinha. É uma metrópole
universal, mundial, um cosmos com gente em trânsito de todos os lugares. E
que influencia o mundo inteiro. Não fossem os eventos que testemunhei
naquela esquina, com certeza, a vida em nosso planeta hoje seria um pouco
pior, para não dizer muito, mas muito pior. Muitos dentre aquelas mil pessoas
aglutinadas ali nas noites da semana não eram completamente indiferentes à
Guerra no Vietnã, nem aos assassinatos no Camboja. As notícias da Europa
dividida por fronteiras armadas e a chamada “Cortina de Ferro” não saiam das
conversas e preocupações. A ameaça do fim do mundo ou da deflagração de
uma guerra nuclear entre as duas superpotências nunca sumia por completo
das noites insones dos presentes. Ninguém estava certo de haver um dia
seguinte. Lembro quando os letreiros luminosos do Cine Belas Artes
anunciavam o filme-documento Corações e Mentes e da cena capturada ao
vivo do vietnamita sendo fuzilado a queima-roupa por um soldado com um tiro
na cabeça. Na tela, o sangue dele jorrava para o alto, como uma fonte.
Impossível esquecer os que de algum modo morreram por nossa sorte. Choro
quando me lembro.
A memória humana é algo tão volátil. Portanto, penso que devemos fazer valer
aquela esquina de São Paulo em memória de alguns momentos felizes que, a
duras penas, de qualquer modo conseguimos desfrutar. Eram tempos terríveis.
O que será posto no lugar dos letreiros luminosos do Cine Belas Artes? Será
pelo menos de igual importância? E se por acaso, no futuro algo tenebroso,
assim, como o que ocorreu venha a acontecer novamente? Quem pode
garantir que a memória de tudo o que se passou será suficiente em nossas
mentes e na dos que nos sucederem para que a história de horror do passado
não venha a se repetir?
Relembro-me jovem com o copo descartável de cerveja na mão e no outro lado
da rua os letreiros do Cine indicando que “O sonho ainda não havia acabado”,
embora tudo levasse a crer que o futuro reservava-nos apenas outro
mandatário uniformizado, “mão de ferro”, com seus ajudantes de ordens,
profissionais da tortura e da intimidação. E o nosso dinheiro de então, que nada
valia sob aquela inflação de 120% ao mês. Salários que compravam nada..
Tudo se desvalorizava tão rápido! A própria vida, parecia não ter muito valor
naqueles anos! E ai de quem realmente se manifestasse em oposição. E o
Cine Belas artes ali a exibir filmes de conteúdo político. Mesmo cortados,
censurados. Alguma coisa sempre conseguia furar o cerco e aparecer
iluminando as noites na nossa frente!
Naqueles tempos, não fazia muito que Martin Luther King havia sido
assassinado, A Ku Klux Klan ditava regras racistas. Da Argentina, ouvíamos
notícias que jovens e universitários estavam sendo jogados vivos de aviões
militares em alto-mar.
Sinto certo orgulho quando cruzo a esquina da Rua da Consolação com a
Avenida Paulista e ainda vejo os luminosos (mesmo apagados) do Cine Belas
Artes diante de mim. Quando penso, sem saudosismo, sobre o futuro do qual
nós de fato, nos livramos. Quando me lembro da persistência, da teimosia, sim,
eu me sinto bem. Mas, endosso que não podemos deixar de agradecer “aos
mortos por nossa felicidade”, e nem a importância daquela esquina cuja
memória é patrimônio histórico não somente da cidade, mas de todos. Há
inúmeras formas de preservação que podem ser sugeridas. Sem dúvida, vale a
pena debatê-las.
Ricardo Vaidergorn é arquiteto, urbanista e mestre em literatura pela FFLCHUSP
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