domingo, 16 de janeiro de 2011

O inquilino mais querido da cidade

Todos os dias, há três anos e meio, um filme melancólico com título esquisito roda nos projetores de uma das seis salas do cinema Belas Artes, na Avenida Paulista com a Consolação. Na fita, Medos Privados em Lugares Públicos, do diretor francês Alain Resnais, recordista absoluto em longevidade na capital, mostra a busca de seis pessoas solitárias por afeto, amizade e paixões. Sem que consigam alcançá-los.
Mesmo em cartaz há tanto tempo, não se pode dizer que o filme é um sucesso estrondoso. Menos de 200 mil pessoas o assistiram. Tropa de Elite 2, o maior público da história do cinema brasileiro, foi visto em dois meses por mais de 10,7 milhões. Enquanto o coronel Nascimento provocou na audiência um comportamento de manada, Medos se alastrou vagarosamente, recomendado de boca em boca, sem divulgação, estabelecendo com a cidade uma relação única. Tornou-se quase necessário. Domingo passado, as 85 cadeiras da sala que passava a obra no Belas Artes estavam ocupadas.
A percepção e a paciência para compreender a demanda pelo filme, sem a gana pelo lucro estratosférico e com a convicção da relevância da fita para o público paulistano, são responsabilidades do administrador de empresas e cineasta André Sturm, de 43 anos. Na semana passada, depois de anunciar o despejo iminente do cinema fundado em 1943 no mesmo endereço, Sturm percebeu que o cuidado com as escolhas havia acertado o alvo. Em poucos dias, os protestos começaram a ganhar corpo. No Facebook, mais de 30 mil pessoas entraram na comunidade que se posicionava contra o fechamento do Belas Artes. O abaixo-assinado virtual já tinha 11 mil nomes. Espontaneamente, a sobrevivência do cinema Belas Artes havia se tornado a mais animada e numerosa causa política da cidade. "Achei legal porque a movimentação começou com jovens de 20 anos. Na passeata da Paulista, a faixa etária era a mesma. A força da reação, que agora pode ajudar a reverter o despejo, mostra que o Belas Artes foi abraçado pela cidade. Estou otimista."
Ontem houve outra manifestação. Cem pessoas saíram em passeata do Belas Artes em direção ao Masp, na Avenida Paulista. Durante o trajeto, pediam aos motoristas que manifestassem apoio buzinando e mostravam cartazes com os dizeres: "Gilberto Kassab, salve nosso cinema".
Garimpo. Sócio do cinema desde 2003 com a O2, do cineasta Fernando Meirelles, Sturm mostra-se discreto, como costumam ser os que trabalham nos bastidores das tarefas importantes que fazem as engrenagens da cidade rodar. Desde 1986, ele é um dos principais nomes por trás das programações de cinemas alternativos que enriquecem a diversidade cultural e fazem a fama da cidade. "São Paulo é diversidade. Pode haver 500 cantinas italianas, mas a gastronomia é reconhecida também graças aos dois ou três tailandeses."
Nascido em Porto Alegre, mas criado entre Santa Cecília e Campo Belo, Sturm ingressou aos 17 anos no curso de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas e, dois anos depois, assumiu a programação e gestão do Cineclube da GV. Garimpava filmes raros entre as latas empoeiradas das distribuidoras da cidade. Pouco depois do fim do curso, em 1989, aos 22 anos, tornou-se programador da Sala Cinemateca.
Um ano antes, em uma viagem ao Festival de Berlim, na Alemanha, trouxe na bagagem quatro filmes para serem distribuídos nos cinemas brasileiros. Percebeu que havia espaço no mercado para uma distribuidora de títulos clássicos e de arte. Em 1989, nascia a Pandora, responsável pelo lançamento no Brasil, entre outros, de Não Amarás (1988), de Krzysztof Kieslowski, e Trainspotting - Sem Limites (1996), de Danny Boyle. "Meu sonho sempre foi ter um cinema. Mas percebi que, se comprasse, não haveria filmes para passar. Daí a ideia da Pandora."
A sociedade no Belas Artes apareceu quando o cinema passava por um período decadente. Para enfrentar a concorrência, o cinema havia se popularizado e perdia o público cativo. Com o novo parceiro, Fernando Meireles, Sturm voltou à programação diferenciada e conseguiu o apoio do HSBC, que durou até março do ano passado. Quando o patrocínio se encerrou, o local passou a correr o risco de fechar, mas resistiu com o apoio de amigos e financiadores. Segundo Sturm, funcionário da Secretaria de Estado da Cultura, o público médio mensal de 28 mil pessoas arca com 80% dos custos. O patrocínio é necessário para fechar as contas.
No fim do ano, quando se preparava para anunciar um novo patrocinador, veio a surpresa. O dono do imóvel cancelou o contrato de aluguel (que subiria para R$ 65 mil), com a ideia de locá-lo para uma loja. O imóvel deve ser entregue no dia 27 de janeiro. Flávio Maluf e a mãe, Eliane, preferiram trocar de inquilino. Uma decisão que provocou nos paulistanos a vontade de debater o destino da cidade onde querem viver. 
Procurado pelo Estado, Flávio disse que ainda não é o momento de se manifestar. Pelos últimos acontecimentos (veja no box ao lado), as chances do despejo diminuíram. Filmes melancólicos, mais baratos, fora dos shoppings centers, passados de madrugada: ainda há esperança.



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